quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Os recreios do paço no tempo de D. Afonso Furtado de Mendonça I

O documento de arquivo apresentado no texto anterior, para além de fornecer dados sobre as características de estilo dos recreios episcopais de Castelo Branco, no tempo do bispo D. Nuno de Noronha, levanta ainda outras questões de interesse para o tema, e que se prendem mais com o foro do Direito.
A sua leitura atenta deixa perceber que quando D. Afonso Furtado de Mendonça adquire os bens vendidos para satisfação de dívidas deixadas pelo seu antecessor (D. Nuno de Noronha), o faz assumindo direfentes personalidades jurídicas. Por um lado, compra, enquanto bispo, uma horta defronte da casa, onde depois se faria a quinta, e ainda mais três casas, mistas com a mesma horta, e ainda outras além do Convento da Graça e Coelheira, em outro tempo tapada com olival.
Por outro lado, D. Afonso Furtado, como pessoa particular, adquire o Olival Basto e vinha contígua, e como aquela expressão pudesse ainda apresentar algumas dúvidas a respeito da qualidade de adquirente, a expressão "comprou com o seu dinheiro", usada a respeito de uma outra aquisição, parece esclarecer cabalmente o assunto. Mesmo quando os bens adquiridos estivesse ao serviço da mitra, como se passou com o caso das quatro moradas de casas que serviam de palheiro do paço.
O facto de D. Violante de Castro, condessa de Odemira, ser citada para responder por algumas dívidas de D. Nuno de Noronha, indica a prática jurídica de responsabilizar os herdeiros por dívidas deixadas pelo de cujus. A nota que aqui interessa sublinhar é que ao mesmo tempo, ainda no ambito de satisfação de dívidas de D. Nuno de Noronha, caso das deixadas ao Dr. André leitão, do tempo em que fora provisor e vigário geral da sé de Viseu, podem ter sido executados bens da mitra, porquanto as mesmas dívidas resultavam do exercício de administração eclesiástica.
Fosse como fosse, estes dados permitem deduzir que também quando D. Nuno de Noronha adquire umas propriedades e funda os paços episcopais, o poderá ter feito enquanto bispo e enquanto pessoa particular, apesar de, aparentemente,  as pessoas e as propriedades andarem confundidas.
Por fim, D. Afonso Furtado de Mendonça impede o fraccionamento do domínio agrícola que o paço possuia, deixando não obstante que os bens que o constituíam continuassem a pertencer a pessoas distintas.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

D. Nuno de Noronha e os primeiros recreios episcopais de Castelo Branco III

Em documentos antigos, nem sempre a designação de algumas palavras se afeiçoa ao significado que hoje lhes damos. Por isso, quando às vezes são referidas hortas, pomares e vinhas junto de palácios, não raro esses espaços corresponderiam àquilo que vulgarmente se chamaria hoje jardim. Com efeito, quando agora se quer sublinhar o bom trato que se dispensa a um espaço cultivado, seja de produtos hortícolas, seja de árvores de fruto, ou mesmo até de explorações agrícolas de maior dimensão, ouve-se dizer que parecem um jardim.
Esta será  a verdadeira essência de um modo de ajardinar português, arreigado a práticas muito antigas, difundidas pela cultura romano-islâmica, que tiram partido da conciliação  do binómio produção/recreio. Mesmo quando  o jardim português se mostra muito sensível às oscilações do gosto, e às transformações estilisticas que o mesmo impõe, que podem consumar-se na concepção de um jardim muito cenográfico, como  aquele que mandou fazer D. João de Mendoça, nunca deixa de revelar elementos que o ligam  aos modos antigos, onde a água dos tanques de rega, o cheiro das árvores de fruto, e uma assumida definição espacial de interior,  conjugando-se com os programas decorativos ditados por ideais estéticos renovados, se apresentam como elementos fundamentais e reveladores de uma certa ancestralidade. 
É de crer que os recreios fundados por D. Nuno de Noronha se inscrevessem num modo de ajardinar onde se tirasse partido dos locais produtivos adjacentes ao seu paço, as tais hortas e olivais que reduziu a melhor estado, segundo a documentação de arquivo. Talvez por isso tenha sido mais fácil a D. João de Mendoça proceder  a uma completa transformação do jardins do paço, quando ali encontra apenas hortas, vinhas e pomares, de onde, muito presumilvelmente, o elemento decorativo e escultórico estaria ausente.

Documento

1614- Treslado do século XVIII (?). Arquivo nacional da Torre do Tombo. Câmara Eclesiástica de Castelo Branco. Diversos, maço 2047. Documento disperso.

«D. Nuno de Noronha, Bispo da Guara, fundou na vila de Castelo Branco umas casas e paços episcopais e as circundou de várias propriedades que comprou e que eram hortas, vinhas, olivais e várias casas- que tudo reduziu a melhor estado.
Para esta compra gastou muito de sua fazenda e morrendo deixou 425$000 réis de dívida a D. Violante de casteo, Condessa de Odemira, que não havendo dinheiro e bens móveis intentou demanda contra a dita fazenda e alcançou sentença, cuja execução recai na horta defronte da casa- hoje quinta- e mais três casas mistas com a mesma horta - e outras além do Convento da Graça e Coelheira- em outro tempo tapada com olival.
Andando os bens em praça lançou Gaspar Correia barreto em eles e os comprou por 437$000 e tantos réis o que com consentimento da sua mulher trespassou esta para D. Afonso Furtado de mendonça, que então era bispo da Guarda, aos 18 de janeiro de 1614 e destas fazendas tomou posse judicial.

Escrivão- manuel de Oliveira
Juiz- Francisco Valadares

E outra dívida de 120$000 réis ao Doutor André leitão, mestre escola de Viseu, do tempo que serviu de provisor e vigário geral quando D. Nuno de Noronha foi Bispo de Viseu.
esta dívida foi julgada provada e por sentença e se fez execução no Olival Basto e vinha contígua que andando em praça não houve quem alcançasse e só o dito D. Afonso Furtado como pessoa particular mandou fazer lanço por seu procurador que ofereceu 124$000 réis por carta de arrematação de 18 de Abril de 1614, sendo escrivão Sebastião Caldeira e corregedor Pedralves de Miranda.
Item. D. Afonso Furtado comprou com seu dinheiro por preço de 65$000 réis a Sebastião Coelho, fidalgo da casa de Sua Magestade, contador do Mestrado de Cristo, e a sua mulher, D. Maria, quatro moradas de casas, que hoje servem de palheiro da mitra a 21 de maio de 1614» 




terça-feira, 28 de dezembro de 2010

D. Nuno de Noronha e os primeiros recreios episcopais de Castelo Branco II

D. Nuno de Noronha (1540-1608) governou o bispado da Guarda no tempo da união da coroa de Portugal à de Castela. Tendo andado o ano antes da sua morte na corte de Madrid, foi muito favorecido de el rei D. Filipe II de Portugal, do qual era muito parente. No quadro político da União Ibérica, parece figura de algum destaque, na linha da inclinação castelhana da sua família, que descendia de D. Henrique I de Castela, o Magnífico, que foi rei depois que matou seu irmão D. Pedro I de Castela, o Cruel, com quem findou a dinastia de Borgonha.
No dizer de Belchior Pina da Fonseca, no Catálogo dos Bispos da Guarda, autor de quem nos socorremos para  dar alguns destes dados biográficos, D. Nuno era gentil-homem e de estatura grande e grandioso no trato de sua casa. Fez cousas grandes e infinitas, assim no governo do bispado como em outras matérias
Foi confirmado reitor da universidade de Coimbra em 1578, em cuja faculdade de teologia se gradua depois como mestre, permanecendo nesse cargo até 1586, ano em que é nomeado por Filipe I de Portugal bispo de Viseu, cidade onde funda um paço episcopal, o convento do Bom Jesus, de freiras da Ordem de S. Bento e um seminário, destinado à formação de clerigos, que dotou prodigamente. Deixando o bispado de Viseu, em 1594, é confirmado pelo papa Clemente VIII bispo da Guarda, diocese herdeira do vetusto bispado Egitaniense, não só prestigiada pela sua antiguidade como também pela sua dimensão. Nesta diocese institui também um seminário, e procede a inúmeras reformas eclesiásticas, acomodadas às disposições do Sagrado Concílio Tridentino.
É possível que a sua ida a Madrid, em 1607, se tenha prendido com a posterior nomeação para o arcebispado de Évora, no ano seguinte. Nunca chegou, porém, a ser confirmado, uma vez que morre em 1608, de uma purga que lhe ministra um médico judeu, segundo António Roxo, nos paços que mandou fazer na vila de Casteo Branco (1596 - 1598), para os bispos, por ser no meio do bispado, para que com mais facilidade concorressem os negócios a ele.

domingo, 26 de dezembro de 2010

D. Nuno de Noronha e os primeiros recreios episcopais de Castelo Branco I

Vista de Castelo Branco, da banda do Norte. Duarte de Armas, início do sec.XVI. No canto inferior direito percebe-se a zona de produção agrícola onde alguns anos mais tarde D. Nuno de Noronha manda fazer o seu paço.


Sendo certo que quando hoje falamos em Jardim do Paço aludimos à obra mandada fazer por D. João de Mendoça, em 1715, a verdade é que foi um outro bispo da Guarda aquele que primeiramente fundou na vila Castelo Branco uns recreios episcopais. Com efeito, D. Nuno de Noronha, filho de D. Sancho de Noronha, conde de Odemira, bispo que foi de Viseu, sendo-o da Guarda, mandou fazer, em 1596, umas casas e  paços episcopais, e os circundou de várias propriedades, que eram hortas, vinhas e olivais, que tudo reduziu a melhor estado.
A vila de Castelo Branco, enquanto não foi elevada a cidade e promovida à categoria de sede de Bispado, o que ocorre em 1771, esteve sob a jurisdição eclesiástica do Bispado da Guarda e na dependência administrativa da Ordem do Templo, da Ordem de Cristo depois e sucessivamente da Casa do Infantado.
Mas foi com a ordem do templo que, em 1242, o bispo da Guarda celebrou, na cidade do Porto, uma amigável composição que, para além de estipular os tributos e privilégios da mitra em Castelo Branco, designadamente a colheita e o jantar, e ainda a quarta parte dos dízimos recolhidos pelos senhores da vila, consagrou o compromisso de serem dadas aos bispos umas suficientes e honradas casas, para agasalho seu e dos seus e para recolhimento das suas procurações e novidades. É de crer que essas casas se situassem aonde hoje chamam o Arco do Bispo, nas imediações dos antigos paços do concelho. Ali existe ainda hoje um edifício que revela alguma nobreza, não obstante algumas intervenções que o diminuiram e, apesar de não existem documentos que o relacionem com a mitra, a toponímia pode concorrer para o estabelecimento de possíveis ligações entre esta casa e o bispado.
Fosse como fosse, quando D. Nuno de Noronha quis fazer para si um novo paço em Castelo Branco, procurou para isso uma nova espacialidade, longe da circunscrição  imposta pelo casario da vila, muros adentro.
O local escolhido para o efeito, ainda que fora das muralhas da vila, não se afastou muito da sua protecção, pois quase partia com as mesmas.Tratava-se de uma zona de produção agrícola, dotada de abundantes  recursos hídricos e que se prestava, por isso, ao projecto que o prelado idealizara. O gosto pela vida ao ar livre começava a produzir os seus efeitos e são inúmeros os exemplos de palácios de nobres  e eclesiásticos que nesta altura se edificam fora dos cascos urbanos das povoações.

O Jardim do Paço

O Jardim do Paço Episcopal de Castelo Branco é, porventura, o monumento mais emblemático desta cidade. Pelo menos, o mais referido em textos e panfletos turísticos, mas também mencionado em obras de cariz académico de História de Arte e guias artísticos de Portugal.
A sua singularidade resulta, talvez, do ciclo de esculturas que ostenta, representativas de alegorias morais, de alusões religiosas, dogmáticas e históricas. Ali estão também figuradas as estações do ano, os signos do zodíaco, entre outros elementos e ornatos meramente decorativos, que fazem da escultura o elemento fundamental deste jardim barroco, que, não sendo de cariz estritamente religioso, não ilude a influência de uma cultura erudita ditada por um alto dignitário da Igreja. D. João de Mendoça, filho da Casa dos Condes de Vale de Reis, formado em Direito Canónico, homem douto, que esteve em Roma, venerado no seu tempo não só pela inteireza de carácter mas pela profunda erudição, exerceu cargos importantes na administração eclesiástica, mas foi enquanto Bispo da Guarda que dotou a então vila de Castelo Branco com uns famosos recreios episcopais, que haveriam de ligar para sempre o seu nome ao desta cidade.